Imagem, discurso e vida pós-massiva
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O mineiro Murilo Eugênio Rubião (1916-1991) inscreveu seu nome entre os expoentes do conto brasileiro, especialmente quando se fala de contos fantásticos. Tanto assim que foi comparado a Machado de Assis no contraste entre uma linguagem policiada, disciplinada, despojada – enquadrada com rigor numa lógica gramatical cristalina – e uma invenção de mundo fantasista, alucinada e ingovernável.
E a que se refere este caráter “fantástico” dos contos murilianos?
É um aspecto das narrativas que apresenta fatos surreais, inexplicáveis racionalmente, incompreensíveis até. Causam estranheza, perplexidade. São histórias que fazem o leitor franzir o cenho, erguer uma sobrancelha, duvidar do que lê.
A linguagem do conto fantástico pode ser alegórica, mas como a narrativa flui no limite entre a realidade, a verossimilhança e a irrealidade, o leitor interage com o texto, tentando racionalizar o que lê. Todorov (Introdução à literatura fantástica, 2010) sintetiza bem a natureza do fantástico: “’Cheguei quase a acreditar’: eis a fórmula que resume o espírito do fantástico. A fé absoluta como a incredulidade total nos levam para fora do fantástico; é a hesitação que lhe dá vida”.
Os contos de Rubião apresentam esta característica que desafia a lógica e a racionalidade. Mas o insólito das situações é apenas um artifício do escritor para questionar a realidade. Alguns de seus contos apresentam uma visão desencantada do homem. É o caso do conto “O pirotécnico Zacarias” (1974), considerado uma narrativa com um certo humor negro, ou mórbido, acerca da efemeridade e fragilidade da existência humana.
De saída, cabe apontar uma referência intertextual – posterior – imediatamente percebida, logo na primeira leitura do conto. O modo como Rubião apresenta o personagem morto, e sua perspectiva pós-morte da realidade, faz lembrar a animação cinematográfica “A noiva cadáver”, dirigida por Tim Burton (2005), e baseada num conto russo do século XIX.
A semelhança reside especificamente na ironia. Na animação, o mundo dos vivos é preto e branco, cinza, sem alegria, mas cheio de protocolos e interesses pouco nobres. Já o mundo dos mortos é colorido, festivo, com música, dança e sentimentos verdadeiros. O defunto muriliano também é irônico. De fato, admite que em sua condição de morto faz tudo o que fazia antes, mas com “mais agrado”. É um morto que reivindica ser ouvido, discute com lógica, continua atraído pelas mulheres e pelos programas noturnos, bebe, e, segundo o próprio pirotécnico, com capacidade de amar e discernir as coisas “bem superior”.
A típica perplexidade dos contos fantásticos aparece nas primeiras linhas de “O pirotécnico Zacarias”. Diferentemente de Brás Cubas (também fantástico), que logo avisa que é o autor defunto, ou defunto autor, em Rubião o leitor rapidamente estranha: é o morto quem conta? Como é isso? E neste momento ele é capturado pela narrativa, e deve prosseguir, incapaz de solucionar o mistério se ficar por ali. E, como bom texto fantástico, a solução não vem; é continuamente empurrada para a frente.
Exemplo está neste trecho: “Em verdade morri, o que vem de encontro à versão dos que creem na minha morte. Por outro lado, também não estou morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente”.
Primeiro, uma expressão bíblica, encontrada nas palavras de Cristo (“em verdade”) parece comprovar a morte. Mas logo se fala em “versão” e “creem”. Para piorar, um “por outro lado”. Que certezas pode haver em tanta antítese e ambiguidade? Nenhuma. Isso, sim, é fantástico.
A narrativa do acidente é emoldurada por um trecho que se repete e que destaca as cores. Daí a lembrança da animação cinematográfica. O trecho reprisado é este: “A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras vemelhas, de um vermelho compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso com pigmentos amarelado, de um amarelo esverdeado, quase sem cor”.
A primeira ocorrência precede a informação de que um automóvel matou o personagem. Foi exatamente quando “tudo começava a ficar branco”, isto é, quando começava a união de cores. Narrado o atropelamento e a reação inicial dos jovens atropeladores, o texto se repetiu, mas com acréscimos. O já morto personagem, que não enxergou os faróis porque não era hora de chegar ao branco (vislumbra-se um mistério, uma explicação metafísica), manifesta que “sem cor jamais quis viver”.
O personagem Jorginho, que empalideceu e tombou, personifica o lado racional mais materialista, e reagiu de acordo: somatizou. Mas, curiosa e fantasticamente, não é o fato de o defunto parlamentar que convence os demais jovens a levá-lo com eles. É sua lógica argumentativa e capacidade de persuasão. Evidentemente, está aí o fantástico, sintetizado na frase “a morte não extinguira essa faculdade”.
Apesar das recorrentes citações intertextuais bíblicas de Murilo Rubião, não parece possível associar o “corpo glorioso” ressurreto, descrito nos evangelhos, com este pirotécnico morto - ou morto pirotécnico, que continua a lidar com luzes e cores.
Pois o personagem não morreu e ressuscitou. Ele apenas morreu e continuou como se estivesse vivo. E não há nada de glorioso num corpo ainda mais suscetível ao etilismo que o organismo vivo. De fato, o álcool agiu como uma espécie de narcótico, provocando um êxtase seguido de uma “semiletargia”, só rompida – eis o fantástico de novo – pelo nascer do dia. Luz, novamente, agindo sobre o personagem.
Sob o sol, quando as sombras se vão e nada mais pode se esconder, veio a consciência do personagem: estava morto. Morto. Morto mesmo, o que significa que, no mundo real, não pode agir como se não estivesse. Mas bem que tenta racionalizar: “Não fosse o ceticismo dos homens, recusando-me aceitar-me vivo ou morto, eu poderia abrigar a ambição de construir uma nova existência”. Mais uma vez, é a tensão entre a realidade e o insólito, o racional e o inexplicável. Tudo em torno de talvez o maior mistério de todos: o que existe depois da morte física?
*Sobre o nome da coluna: Inter legere, expressão da qual se origina a palavra “inteligência”, designa aquela pessoa que sabe escolher entre diversas opções. Sabe escolher o mais elevado, o superior, as virtudes. Quem não “lê entre” termina fazendo escolhas ruins, precipitadas e impulsivas. Daí o nome da coluna exortar a leitura (de livros, de filmes, do mundo) para que saiba escolher bem seus caminhos.