As novas abordagens teóricas e empíricas voltadas às Artes e a campos de estudo tais como as Letras, a Geografia, a História, as Ciências Sociais, a Comunicação Social, a Educação e até mesmo a Medicina tem aberto caminho a distintas metodologias e práticas, de modo que o que se considerava “menor”, “errado” ou “inferior” em tempos passados passou a ser preponderante. Nos dias de hoje, as expressões literárias, musicais, orais, performáticas, cinematográficas, midiáticas, religiosas e étnico-culturais irrompem como signos a metamorfosear cenários que ainda contemplam conceitos de “arte pura”, de tradições estáticas e de sociedades homogêneas. Os séculos de tráfico negreiro e de extermínio indígena nas Américas, aliados aos antigos/contemporâneos períodos de [i]migrações amalgamaram distintas etnias, nações e ancestralidades. Apesar das práticas brutais do colonialismo (o tráfico, a xenofobia, o racismo, o preconceito social, religioso e de gênero) e das coações provocadas pela globalização desenfreada (desemprego, mortes, escravização, abismos sociais e econômicos, violação de direitos humanos), surgem novos meios de se ver, compreender e ressignificar o mundo. O professor e antropólogo brasileiro-congolês Kabengele Munanga pondera sobre a “formação de uma nova cidadania por meio de uma pedagogia multicultural. Acredita-se que essa nova pedagogia possa contribuir na construção de uma cultura de paz e no fim das guerras entre deuses, religiões e culturas”.
Pareados à proposta de Munanga, os capítulos que compõem esse livro oferecem – cada qual a seu modo – renovadas pedagogias e metodologias quanto ao estudo da Literatura, das Artes e das Etnicidades. Discussões em torno da África, sua cultura, ancestralidades, problemas, mitos, belezas, riquezas, linguagens e tradições foram aqui temáticas preponderantes. Importantes intelectuais negras contemporâneas, como a atriz, dramaturga e diretora brasileira Grace Passô e a escritora do Zimbabwe NoViolet Bulawayo são nomes que aparecem entre os estudos, rompendo com a tradição de autores brancos, focados em questões eurocêntricas. Os discursos são outros. Não mais a valsa e o minuete dominam os salões – aqui, os terreiros abrem suas portas, com os afoxés e as danças de Iansã, Eparrei Oyá!, comandando os ventos, cortando os ares, regendo a vida; e com o ritmo pulsante das alfaias e a reinvenção da tradição dos Maracatus de Baque-Virado pernambucanos. A alegria do samba e a versatilidade do RAP pedem passagem na avenida das teorias, pedagogias e linguagens. O cantor e compositor Criolo, de família cearense, e o sambista, historiador e escritor negro Nei Lopes são bambas aqui pesquisados, demonstrando que novos são os ‘fundamentos’: “O samba é uma coisa de dentro / Tem os seus fundamentos / Os seus rituais / E a gente só penetra essa seita / E em seu colo se deita / Quando sabe o que faz”.
Vigorosos modelos de investigação nas literaturas e nas artes brotam como garantias de que os “velhos fundamentos” cedem vez a vozes decoloniais, conscientes da diáspora, desde o soar dos agbês ao trajeto da caneta inquieta de Lima Barreto e as utopias de Policarpo Quaresma. Entre as culturas aqui reunidas, espaço para a experiência etnográfica com o cinema Mbya (origem Guarani), demonstrando que os povos indígenas também estão engajados para salvaguardar suas identidades, seus territórios e sua ancestral sabedoria. Quanto aos olhares críticos, as propostas foram distintas: tanto se retomou a poesia musical erudita produzida nos primeiros decênios do XX no Brasil e como o negro foi estereotipado pelas vozes intelectuais da época quanto foi analisada a circulação de fake news no Twitter referentes ao caso Marielle Franco. Tais concepções elucidam que o falso, senão pernicioso conceito de “democracia racial” não passa de uma grande invenção da branquitude. Ainda entraram no livro o onírico de Mia Couto e José Eduardo Agualusa, revelando-se como Angola e Moçambique são nações irmanadas pela literatura e pelos traumas do passado imperialista; bem como se fizeram originais os estudos sobre a gramática exuística na performance do lendário José Mojica – o Zé do Caixão – no cinema. Saravá Seu Zé!
Distintos são os olhares, distintos são os ecos e as temáticas aqui abordadas, todavia, com um ponto em comum: a permanente ruptura com as formas hegemônicas de arte, das literaturas, das etnias e demais campos do conhecimento. Acreditamos que os tempos são outros e cada vez mais contribuições como estas estarão registradas em livros de contento acadêmico, pois é só assim, na luta, que os saberes, usurpados de povos tão ricos, reencontrarão seu lugar de pertencimento.
Laroyê Exu! Exu é Mojubá!
Estão abertos os trabalhos!