Ciência & Literatura
Myrian Del Vecchio-Lima
01 de agosto de 2021

Literatura e ciência, pontos tangenciais

Mundos separados? Nem tanto. Relacionar a literatura com a ciência é mais comum do que pode parecer.


Uma das vertentes mais conhecidas desta combinação diz respeito ao rótulo que aparece nas prateleiras de livrarias ou bibliotecas: ficção científica. O gênero despontou no século XIX, com a ascensão da ciência experimental, sendo precursores os romances Frankenstein (Mary Shelley, 1818) e o O Médico e o Monstro (Robert Louis Stevenson, 1886). Mas muitos o relacionam de imediato ao século XX, com séries para televisão como Startreck e Perdidos no Espaço; ou com o cinema, onde se desenvolveu um filão de inumeráveis filmes, que disputam narrativas e técnicas, bastando citar um deles: o requintadíssimo e insuperável em termos conceituais 2001: Uma odisseia no espaço (1968), de Stanley Kubrick, baseado no clássico de Arthur C. Clarke.

Os interessados no gênero sci-fi podem ir de Ray Bradbury, com As Crônicas Marcianas, que explora peripécias em espacialidades não-terrestres; a Isaac Asimov e os contos de Eu, Robô, com as perspectivas futuristas de personagem cyborgs; para atualizar, que tal a leitura mais do que prazerosa do talentosíssimo romancista e ensaísta britânico Ian McEwan, que nos apresenta um humano sintético, Adam, o  robô  apaixonado e enciumado em Máquinas como Eu (2019) — aqui se  exploram frágeis limites entre o humano e o não humano quando se constroem artefatos que podem ficar fora de controle; McEwan mistura à narrativa o não-fictício Alan Turing, matemático considerado o “pai da computação” e uma Guerra das Malvinas vencida pelos argentinos.

Na mesma linha, pode-se adentrar nos gêneros distópicos, em que a ciência e a tecnologia contribuem para o mal-estar social — leia-se os clássicos mais conhecidos como 1984, de George Orwell, ou Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Nesta seara está Margaret Atwood, recentemente incensada por feministas, muito em função da série de televisão produzida pela HBO, a partir do seu O Conto da Aia — antes da adaptação audiovisual muitos não conheciam a obra.

Enfim, nesta prateleira se enfileiram uma profusão de autores que souberam com arte literária usar a imaginação científica e futurista,  como são os casos de Julio Verne, H. G. Wells, Ursula Le Guin, Arthur C. Clarke, Philip Dick. E como não lembrar da ficção cyberpunk de William Gibson, em Neuromancer, citado até em aulas de cibercultura? No Brasil há gente no gênero, mas ainda não fizemos um clássico, mesmo tendo um Murilo Rubião, classificado como representante do realismo fantástico latino-americano, que situa personagens em um eterno presente sem futuro;  e o escritor goiano José J. Veiga, com textos incomuns que destacam personagens infantis e contextos de alegoria política.

Mas, a dobradinha ciência e literatura assume outra via  ao produzir livros baseados na ciência real, descrita de forma interessante pelos próprios cientistas. Esta vertente é enquadrada no que se chama de divulgação científica, ou livros de popularização da ciência, praticada pelos science writters. O nome inglês faz jus a um forte filão de consumo de produtos do gênero nos Estados Unidos, e daí para o mundo. Um exemplo que há anos se coloca no topo das vendas são os livros de Carl Sagan, nome atrás do qual podemos colocar uma série de qualificações — cientista, astrônomo, astrofísico, cosmólogo, escritor e divulgador científico. Aqui não temos gente da literatura fazendo ficção, mas profissionais da ciência divulgando seus campos de estudo, mas lidos como gênero literário, graças a uma escrita cheia de talento, estilo e bons argumentos. De Sagan, quem não conhece Cosmos, que virou série de TV, ou O Mundo Assombrado pelos Demônios? A Wikipedia aponta que Sagan escreveu mais de vinte livros de ciência e ficção.

Alguns pesquisadores emplacam best-sellers especulativos sobre ciência, história e extraterrestres, como é o caso do mega-sucesso do final dos anos 1960 Eram os Deuses Astronautas?, do antropólogo Erich Däniken, com uma narrativa onde o viés científico parece soar de maneira meio forçada. Mas ao lado de centenas de obras neste estilo especulativo, que estudiosos mais rígidos vão chamar de pseudo-científicos, temos obras baseadas em relatos de pura ciência, inclusive de experiências vividas em consultórios médicos e clínicas. O psiquiatra Oliver Sacks, por exemplo, em seu livro de contos O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, não fica nada a dever ao talento de um hábil escritor de ficção. Entretanto, são relatos clínicos verídicos  baseados em anos de atendimento a pacientes portadores das mais diversas síndromes mentais e neuropatias. Sem maiores informações, o leitor consome todas as histórias como engenhosos contos, artefatos literários bem acabados, saídos da cabeça de um escritor cheio de imaginação.

Há ainda os ficcionistas que colocam informações científicas apresentadas de forma clara e precisa, como pano de fundo para um mundo de histórias, que vão de dramas sobre doenças (A Morte Vermelha, de Edgar Alan Poe), discussões forenses em livros de crime (O Quarto em Chamas, de Michael Connely); narrativas sobre epidemias reais ou metafóricas (A Peste, de Camus) ou denúncias vestidas de romance sobre experimentos da indústria farmacêutica (O Jardineiro Fiel, de John Le Carré). E há ainda o universo das biografias sobre cientistas e pesquisadores, que relatam em detalhes onipresentes as vidas de Einsten (Einstein,Walter Isaacson); Marie Curie (Marie Curie: uma vida, de Susan Quinn) ou Oswaldo Cruz (Oswaldo Cruz, de Moacyr Scliar).

Uma das abordagens mais interessantes é a que faz a bióloga Rachel Carson, conhecida por ecologistas de todo o mundo pelo seu livro Primavera Silenciosa (1962), denúncia pioneira contra o uso de agrotóxicos. Ela conta como o uso de venenos nos plantios começa a dizimar a fauna de pássaros, nos Estados Unidos, com seu cantar sazonal deixando de acontecer. O primeiro capítulo do livro pinta o cenário futurista de um mundo onde árvores não têm mais folhas, com rios contaminados sem peixes, e sem o som dos pássaros. Mas, hoje o lírico texto “Uma Fábula para o Amanhã” de Carson deixou de ser ficção — em muitos lugares é triste realidade, representando uma amostra perfeita da equação que reúne narrativa ficcional e base científica.

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