Literatura, Artes e Etnicidades
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Antonio Candido, em seu famoso artigo “O direito à Literatura”, diz que a Literatura tem a capacidade de humanizar o ser humano. Esse dizer nos direciona momentaneamente para a ideia de que os livros literários edificam as pessoas, no sentido de torná-las melhores em sua existência. Contudo, o grande crítico literário nos alerta para o fato de que a Literatura nos humaniza porque ela é a imagem e a transfiguração da vida em toda a sua complexidade. Logo, a Literatura é uma realidade da nossa condição humana. Pode ser que seja essa a razão pela qual Antonio Candido defende a função humanizadora dessa arte, “em sentido profundo, porque faz viver”. Pessoalmente, essa experiência do “faz viver” foi muito visceral quando eu li o livro “Pacientes que curam – o cotidiano de uma médica do SUS” da escritora, cantora e médica, Júlia Rocha.
Este livro é um conjunto de histórias sobre alguns pacientes da Dra. Júlia Rocha em seu cotidiano como médica da família no SUS, em diferentes regiões periféricas. Essas narrativas nos colocam na realidade das pessoas da periferia, principalmente, das mulheres negras de diferentes faixas etárias. Até aqui já é possível se perguntar sobre como uma médica brasileira, com toda a formação elitista das faculdades de medicina, conduziria o seu trabalho em uma unidade de saúde de um bairro paupérrimo da cidade. Diante disso, o prefácio permite compreender que não se trata de uma médica levando a cura para os mais pobres, mas de uma médica sendo curada pelos seus pacientes:
Ainda bem que acordei rápido. Fui invadida a tempo pela humanidade que recebi dos meus pais e dos meus pacientes. Houve tempo de me encantar pelas histórias, de abraçar muito aquelas pessoas, de receber os presentes que colhiam em suas hortas, os queijos que eles próprios faziam. Houve tardes de encontros com a comunidade, café, batizado e casamento. Eles me salvaram. (ROCHA, 2020, p.12).
Desse modo, nós entramos em contato com uma médica estúdios das doenças na faculdade, mas aprendiz da saúde nas periferias. Essa dicotomia saúde/doença aparece no livro para nos mostrar que ter saúde é ter acesso à qualidade de vida, pois “saudável é quem vai à roda de samba, ao cinema, ao concerto, ao teatro” (ROCHA, 2020, p.12). Assim, eu tomo a liberdade de acrescentar, saudável é quem lê livros, principalmente essa obra “Pacientes que curam – o cotidiano de uma médica do SUS”. Cada história traz uma dor e uma cura, tal como se vê nas seguintes narrativas.
A história “O retorno: uma reflexão sobre o amor e sobre as pontes que construímos” mostra a saúde proporcionada por um relacionamento familiar voltado para o acolhimento. Nesse episódio, a médica relata a consulta com uma avó, preocupada com o neto, criado por ela, quando ele experimentou maconha. Esse menino cresceu longe dos pais e esse fato é abordado pela Dra. Júlia a partir de uma escuta sensível das preocupações da avó, até a médica mostrar a necessidade de se amar incondicionalmente as pessoas, principalmente nas fases mais difíceis de suas vidas.
Ainda assim, outra história nos instiga a enxergar a complexidade desse sentimento altruísta de doação gratuita ao outro, como se vê em “Não cuido”. O relato é de um homem idoso com muitos problemas de saúde e carente de assistência familiar. Quando a médica questionou a ex-mulher do paciente, ouviu em alto e em bom som: “Não quero nem saber. Esse homem judiou de mim o quanto pôde e me largou com seis filhos pequenos pra morar com uma mulher mais nova” (ROCHA, 2020, p.66). Aqui nós nos deparamos com a complexidade do ser humano diante da realidade das suas dores e das suas crenças morais, mesmo que a sociedade nos interpele ao altruísmo e à devoção empática diante dos nossos algozes.
Além disso, o livro nos mostra histórias surpreendentes de dentro de um plantão médico. Tal como é “Um dia frio”, quando a médica relata a aproximação entre Dona Carmen e Seu André, duas pessoas adultas, solitárias e que encontram o caminho para o amor em uma situação extremamente difícil. Isso pode ser resumido nas palavras da autora: “Nos pronto-atendimentos acontecem grandes transformações humanas todos os dias. Talvez, pela clareza do efêmero da vida. Talvez, pela nítida impotência que se vive diante do inevitável fim” (ROCHA, 2020,p.76).
Por essas histórias, e outras mais, pode-se dizer que o livro de Júlia Rocha é belamente triste. As narrativas são duras, mas revelam uma possibilidade de seguir com vida, com amor, apesar das adversidades. É um livro para se recuperar a fé na humanidade, o que só possível quando nós somos humanizados para realidade fundamental da vida humana. Nós somos efêmeros, mas incrivelmente maravilhosos em nossa finitude. Essa é a força matriz para a existência da arte, algo que a nossa autora faz muito bem quando escreve livros e quando canta samba. O samba, o pai da tristeza e o filho da dor, tem todo o poder transformador também encontrado na Literatura. Essas duas forças artísticas nos conduzem durante a leitura de “Pacientes que curam – o cotidiano de uma médica do SUS”.
Zilda Dourado é goiana e floresce todos os anos em agosto, junto com o Ipê amarelo. Ela é professora do curso de Letras da Universidade Estadual de Goiás – Câmpus Sudoeste (sede em Quirinópolis). Possui doutorado em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. Ela ama Dança de salão, Música e Literatura.