O palhaço e o meteorito
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A tríplice que caracteriza o pilar fundamental da ficção especulativa — terror, fantasia e ficção científica — nos oferece o privilégio de encontrar, fora da realidade, algumas importantes reflexões sobre o que vivemos no nosso dia a dia. São histórias em planetas distantes, com criaturas fantásticas, sobre pessoas soturnas e tantos outros temas, mas que no fundo estão falando sobre a nossa realidade. E nos ajudam a compreendê-la e aceitá-la melhor.
Um bom exemplo disso é a obra de Ursula K. Le Guin, uma das mais importantes escritoras de ficção científica, que nos brinda com debates profundos sobre humanidade, nossos vícios e nossas virtudes. De escrita inteligente, moderna e acessível, Le Guin nunca abriu mão de colocar o dedo em feridas, principalmente nas relacionadas ao patriarcado. Sua obra consegue juntar o teor dos debates da Segunda Onda do Movimento Feminista, com uma narrativa coesa e bem ambientada.
Porém, Le Guin está acima de amarras temáticas e durante seu período de atividade (de 1959 até a sua morte, em 2018) escreveu romances, contos e ensaios que variavam da ficção científica e fantasia à não-ficção. E é nesse vasto e rico universo da literatura, que está uma obra pouco lembrada, mas não menos importante.
A Curva do Sonho chegou ao Brasil em 2019, e talvez não pudesse haver momento mais oportuno. A obra, publicada originalmente em 1971, acompanha George Orr, um personagem que seria o mais mundano dos mortais, não fosse por um estranho poder (se é uma benção ou maldição, cabe ao leitor decidir): ele é capaz de alterar a realidade em seus sonhos. Com medo das consequências que seu subconsciente pode causar à humanidade enquanto dorme, Orr passa a utilizar substâncias ilícitas que o impedem de sonhar, porém, acaba sendo pego e é forçado a fazer terapias para não ser preso.
E é aqui que a genialidade de Le Guin começa a aparecer. Ao colocar Orr aos cuidados de um médico cético, mas fiel em suas convicções, a autora descreve com extrema habilidade as consultas que faz com William Haber — o psiquiatra que ficou responsável por avaliá-lo —, e pilar central de uma discussão muito maior do que o poder em si de Orr.
Deste ponto em diante, a história toma rumos inesperados a cada página, conforme Haber percebe o poder que tem em suas mãos, transformando Orr em uma ferramenta para “consertar” a humanidade. Le Guin não perde tempo conforme avança a sua história, e a cada novo capítulo (ou a cada vez que Orr acorda), é impossível prever qual o novo impacto das sessões de Haber.
Os perigos das boas intenções
Em um primeiro momento, o poder de Orr soa como se fosse capaz de resolver qualquer problema da humanidade. Porém, Le Guin não se permite cair em soluções fáceis ou preguiçosas. Assim, se o protagonista sonha com a paz mundial, ela precisa ter uma motivação que a justifique, afinal, a humanidade não é dada a soluções simples e pragmáticas.
Desta maneira, quando Haber passa a assumir o controle dos sonhos de Orr — através de sessões de hipnose e sugestão —, ele indica o que deve acontecer, mas jamais como. Acabar com a fome no mundo, por exemplo, implicaria em diminuir o número de pessoas na Terra. E com essa narrativa, Le Guin fala sobre o que significa realmente dar poder absoluto a uma pessoa, por mais bem intencionada que ela seja.
Aliás, é destas boas intenções que partem os dilemas de Orr, afinal, ele sabe que Haber não está planejando o fim da humanidade (mesmo que algumas das suas sugestões possam levar a esse trágico fim). Ao procurar ajuda, Orr reconhece a decência de seu médico, reforçando o conflito que a obra levanta, e isso faz deste, um livro tão importante em 2021, quanto foi 50 anos antes. A autora se propôs (correndo todos os riscos que isso traz) a questionar sobre os perigos que poderiam haver em dar poder absoluto a uma pessoa bem intencionada. Mas, mais importante, ela nos mostra, através das lentes da ficção científica, as consequências disso. Le Guin ilustra que o mundo que talvez nós sonhamos, pode vir com consequências terríveis, e que a linha entre o sonho da utopia e o pesadelo da distopia não é exatamente muito grande.
A Curva do Sonho é certamente um dos romances mais instigantes de Ursula K. Le Guin. Apenas isso já justifica uma leitura atenta. Porém, ele nos oferece vislumbres de que por muito pouco podemos beirar a insanidade e, ao cobiçar cegamente nossos sonhos, podemos criar um ambiente que se vale pela ideia de que “os fins justificam os meios” — e que como sempre, leva a consequências nefastas. Viver sob este tipo de filosofia já nos levou a momentos de tensão e destruição, e nessas horas, nunca é demais recorrer ao poder criativo de escritores para pensarmos duas, três ou até quatro vezes, se as nossas boas intenções não trazem com elas terríveis consequências.
Robinson Samulak Alves é jornalista, mestrando em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná (PPGCOM/UFPR), pesquisador do Núcleo de Estudos de Ficção Seriada e Audiovisualidas (Nefics) e amante de cinema e música que acredita na honestidade dos filmes ruins e que Ringo Star era o melhor Beatle.