Animais operadores de consumo
Ver livro
Cento e dois anos depois, e nada mudou. “Há um interesse das autoridades sanitárias de ocultar a verdadeira situação.” Ou: “O governo escondeu o número de mortos para não alarmar”. Ou ainda: “A homeopatia, o espiritismo e as hervas, não curam a grippe, como nenhuma outra moléstia infectuosa ou parasitária.” E também: “[…] teve logar um barolhento baile que, dado a agglomeração de mulheres da vida fácil e de muitos desocupados, muito incommodou a visinhança, onde se acham pessoas atacadas de grippe.”
Estas e outras notícias, que de certa forma exemplificam historicamente o comportamento duvidoso do brasileiro quando é chamado a se fortalecer enquanto sociedade, estão em “O Mez da Grippe”, livro de Valêncio Xavier (1933-2008) lançado originalmente em 1981, e que ganhou providencial nova edição pela “Arte & Letra” em julho de 2020.
Jornalista e cineasta nascido em São Paulo e radicado em Curitiba, Valêncio era um sujeito inventivo e “O Mez da Grippe” é sua maior obra. O livro mescla suas paixões e talentos ao nos oferecer uma narrativa visual que se transforma, aos poucos, numa novela de colagens. Página a página, há recortes de jornais, depoimentos, gravuras, poesia, fotografia e anúncios publicitários colhidos em jornais de Curitiba durante novembro e dezembro de 1918, período em que a chamada gripe espanhola devastou a cidade a ponto de “o director do serviço sanitario mandar avisar as emprezas funerarias que ficam proibidos os enterros á mão”.
“O Mez da Grippe” já tinha duas edições: uma pela Secretaria de Cultura, em 1981; e outra pela Companhia das Letras, em 1998, quando o livro ganhou projeção nacional. Depois disso, virou raridade extravagante em sebos, e foi adaptado para o cinema em 2007, por Beto Carminatti e Pedro Merege, sob o título de “Mystérios”. Sem surpresas, o livro sob nova edição da Arte & Letra foi um mais vendidos pela editora no ano passado.
Ler “O Mez da Grippe” hoje, ao som ensurdecedor de ambulâncias e de negacionismos irracionais em meio a maior tragédia sanitária de um país que soma 270 mil mortos e continua a pilhá-los, é um estranho exercício de retrofuturismo. Porque as analogias com a experiência real deste dia a dia infinito são instantâneas. Não é mais preciso imaginação para se deslocar à Curitiba de um século atrás quando lemos anúncios de remédios milagrosos que curam a “grippe” ou denúncias sobre soldados que descumpriram o isolamento e promoveram festinhas a custo do dinheiro público. Tudo, sem verniz naftalínico, está escancarado.
Quando lançou a obra, nos anos 1980, Valêncio Xavier dialogava com uma tradição modernista e dadaísta entendida de forma particular. Formalmente, “O Mez da Grippe” tem um caráter experimental e vanguardista, que se abre o tempo todo para outras linguagens. Mas seu conteúdo é indelével. Como agora, na história desta pandemia, não há uma narrativa pronta. São registros soltos sobre diversos aspectos da gripe espanhola numa cidade então provinciana com 73 mil habitantes, mas que ganham eco e fio condutor quando se juntam no imaginário de um leitor de nossos dias.
Há quem diga que “O Mez da Grippe” não é um livro fácil. Hoje, é menos difícil. Justamente pela experiência específica que temos, menos como leitor, e mais como brasileiros à deriva. É interessante, por exemplo, pensar na poesia desmembrada que acompanha a colagem.
Fina loura linha
não de tecer
mas louro novelo
ninho para o pássaro
asas da minha mão
Ao colocar lado a lado a tragédia e a arte, Valêncio se desloca momentaneamente de um realismo opaco e incontornável para exprimir muito daquilo que não se consegue (ou se conseguia) mais dizer. Ou você é um dos que tem cabeça e estômago para acompanhar o noticiário 24 horas por dia?
Vale lembrar também que Valêncio Xavier foio fundador da Cinemateca de Curitiba. Muitos recortes do livro valorizam o escapismo da arte, ou a falta dele, perante o assombro de uma doença que se espalhava rapidamente e que, segundo o relatório do Dr. Trajano Reis, diretor do “Serviço Sanitário” em 1919, matou 321 curitibanos. “A falta de cinemas transforma Curitiba em uma cidade de mortos”, lê-se num recorte do “Diário da Tarde”, jornal que circulou entre 1910 e 1930.
Mesmo antes de sua redescoberta e de sua nova edição, “O Mez da Grippe” era um dos livros de cabeceira do escritor e ilustrador Lourenço Mutarelli, e influência pós-moderna para autores como Joca Terron e Veronica Stigger. Para quem o lê agora, serve como um espelho alquebrado: apesar do espectro da distância, o reflexo que vemos é duplo e carcomido.
Cristiano Castilho é jornalista formado pela UFPR e pós-graduado em Jornalismo Literário pela ABJL. Em 2019, lançou o livro "Crônicas da Cidade Inventada e Outras Pequenas Histórias" (Arte & Letra).